Por que o ouvido entope ao subir ou descer uma serra?
- Patrick Vizzotto
- 9 de out.
- 8 min de leitura
Mudanças rápidas na pressão atmosférica alteram o equilíbrio do ouvido médio, provocando a sensação de ouvido tampado ou dolorido.

Viajantes em estradas de serra, passageiros de avião e mergulhadores frequentemente relatam a sensação de ouvido tampado ou dolorido. O fenômeno ocorre quando variações rápidas de altitude provocam desequilíbrios entre a pressão atmosférica externa e a pressão interna do ouvido médio, afetando o funcionamento do tímpano e causando desconforto temporário.
Quem nunca vivenciou a cena? Viagem para o litoral, a família no carro, a paisagem deslumbrante da serra se desenrolando pela janela. Contudo, em meio à beleza do trajeto, um incômodo sutil, porém persistente, começa a se manifestar. Primeiro, uma leve sensação de plenitude no ouvido, como se algo o estivesse preenchendo. A audição parece abafada, os sons externos perdem a nitidez. Em alguns casos, essa sensação evolui para uma dor aguda e latejante. Este é um fenômeno quase universal, relatado por viajantes em serras, passageiros de avião e até mesmo mergulhadores. Mas o que exatamente está acontecendo dentro de nossas cabeças durante esses momentos?
A resposta não reside em um único fator, mas em uma interação entre a anatomia do nosso aparelho auditivo e uma das forças mais fundamentais e onipresentes da natureza: a pressão atmosférica. Embora invisível e frequentemente ignorada, a atmosfera exerce um peso constante sobre tudo e todos na superfície da Terra. Nossos corpos são máquinas extraordinariamente bem adaptadas para viver sob essa pressão, mas são as mudanças rápidas nela que desencadeiam essa resposta desconfortável.
A anatomia do ouvido humano
Para entender por que o ouvido "entope", precisamos primeiro compreender a sua estrutura. Longe de ser um simples funil para o som, o ouvido humano é um dispositivo sofisticado, dividido em três seções principais, cada uma com uma função distinta no complexo processo de audição.
O ouvido externo - o coletor de ondas sonoras: Tudo começa com a parte que podemos ver: a orelha, ou pavilhão auricular. Sua forma concheada não é um mero acaso estético; ela funciona como uma antena parabólica, captando as ondas sonoras do ambiente e direcionando-as para o canal auditivo (ou meato acústico). Este canal, por sua vez, conduz essas ondas para o interior da cabeça, em direção à fronteira com a próxima seção do ouvido.
O tímpano e o ouvido médio: No final do canal auditivo, encontramos uma membrana fina, flexível e extremamente sensível: o tímpano. Ele atua como a pele de um tambor, vibrando em resposta às ondas sonoras que o atingem. O tímpano marca a separação entre o ouvido externo e o ouvido médio, uma pequena câmara preenchida de ar.
Dentro desta câmara, reside uma das mais elegantes estruturas do corpo humano: a cadeia ossicular. Trata-se de um conjunto de três ossos minúsculos – os menores do nosso corpo – chamados martelo, bigorna e estribo. Eles estão conectados em sequência, formando uma ponte mecânica que liga o tímpano ao ouvido interno. Quando o tímpano vibra, ele movimenta o martelo, que move a bigorna, que por sua vez empurra o estribo. Este sistema de alavancas não apenas transmite a vibração, mas a amplifica, preparando o sinal sonoro para a próxima e última etapa.
É importante saber, para o nosso entendimento, que o ouvido médio é uma câmara cheia de ar que, em condições normais, está selada do mundo exterior pelo tímpano. Para que o tímpano vibre livremente e de forma eficiente, a pressão do ar dentro desta câmara deve ser igual à pressão do ar do lado de fora. Se houver uma diferença significativa, o tímpano será empurrado para dentro ou para fora, ficando esticado e rígido, o que compromete sua capacidade de vibrar e, consequentemente, nossa audição.
A tuba auditiva - a válvula de equilíbrio: Mas como o corpo garante que a pressão dentro do ouvido médio permaneça igual à do ambiente? Aqui entra a peça-chave do nosso quebra-cabeça: a tuba auditiva, também conhecida como Trompa de Eustáquio. Trata-se de um pequeno canal que conecta o ouvido médio à parte de trás do nosso nariz, uma região chamada nasofaringe.
Em seu estado normal, a tuba auditiva permanece fechada. No entanto, toda vez que engolimos, bocejamos ou mastigamos, músculos específicos na garganta, como o tensor do véu palatino, se contraem e puxam a tuba, abrindo-a por uma fração de segundo. Essa breve abertura permite que o ar flua da nasofaringe para o ouvido médio (ou vice-versa), igualando a pressão interna com a pressão atmosférica externa. É um sistema de equalização automático e brilhante que funciona de forma tão imperceptível que, na maior parte do tempo, nem nos damos conta de sua existência.
O ouvido interno - o tradutor neural: Por fim, as vibrações amplificadas pelo ouvido médio chegam ao ouvido interno. Aqui, uma estrutura em forma de caracol chamada cóclea transforma a energia mecânica das vibrações em impulsos elétricos. Dentro da cóclea, um fluido se move e estimula milhares de células ciliadas microscópicas, que funcionam como microfones biológicos. Esses impulsos elétricos são então enviados ao cérebro através do nervo auditivo, onde são finalmente interpretados como os sons que reconhecemos.
Com essa arquitetura em mente, fica claro que o bom funcionamento de todo o sistema depende criticamente da mobilidade do tímpano, que por sua vez depende do equilíbrio de pressão mantido pela tuba auditiva. Agora, vamos sair da anatomia e explorar a força externa que desafia esse equilíbrio: a pressão atmosférica.
O oceano de ar – entendendo a pressão atmosférica
Vivemos no fundo de um vasto oceano, não de água, mas de ar! Essa camada de gases que envolve o planeta, a atmosfera, embora pareça etérea e sem peso, é composta de matéria e, portanto, é atraída pela gravidade da Terra. A pressão atmosférica nada mais é do que o peso exercido por toda a coluna de ar que está diretamente acima de nós.
O cientista italiano Evangelista Torricelli foi o primeiro a medir essa força no século XVII, demonstrando que ela era capaz de sustentar uma coluna de mercúrio a uma altura de 76 centímetros ao nível do mar. Embora não a sintamos diretamente – pois ela nos pressiona de todas as direções, e nosso corpo exerce uma pressão interna para contrabalançá-la –, sua magnitude é surpreendente. Sobre cada metro quadrado de superfície ao nível do mar, a atmosfera exerce uma força equivalente ao peso de aproximadamente 10.000 quilos, ou seja, uma tonelada de ar.
A característica mais importante da pressão atmosférica para a nossa discussão é que ela não é constante. Ela varia principalmente com a altitude. Imagine a atmosfera como uma pilha de cobertores. Quem está na base da pilha (nível do mar) sente o peso de todos os cobertores. Conforme você sobe, há menos cobertores acima de você, e o peso que você sente é menor. O mesmo acontece com o ar.
• Em altitudes mais baixas (como no nível do mar), a coluna de ar acima é maior e mais densa, resultando em uma pressão atmosférica mais alta.
• Em altitudes mais elevadas (como no topo de uma serra), a coluna de ar é menor e menos densa, resultando em uma pressão atmosférica mais baixa.
Essa relação é a chave para entender o que acontece em nossas viagens. Quando subimos ou descemos uma serra, estamos nos movendo verticalmente através deste "oceano de ar", expondo nosso corpo a mudanças rápidas no peso da atmosfera ao nosso redor. E é o nosso delicado sistema auditivo que primeiro sinaliza essa mudança.
A Batalha das pressões – o que acontece na subida e na descida
Agora, vamos unir os conceitos de anatomia e física para visualizar o drama que se desenrola dentro de nosso ouvido médio durante uma viagem de serra.
O cenário da descida - a pressão que esmaga: Este é o cenário mais comum para o desconforto. Você está no topo da serra, digamos, a 800 metros de altitude. Seu corpo, incluindo o ar dentro do seu ouvido médio, está aclimatado à pressão atmosférica mais baixa daquela altitude. A tuba auditiva, através de deglutições ocasionais, manteve o equilíbrio perfeito.
Então, você começa a descer. Conforme o carro perde altitude rapidamente, a pressão atmosférica do lado de fora do seu corpo começa a aumentar progressivamente. A coluna de ar acima de você está ficando maior. Agora, temos um desequilíbrio: a pressão do lado de fora do tímpano (no ouvido externo) está se tornando significativamente maior do que a pressão do ar que ficou "preso" dentro do seu ouvido médio.
Essa diferença de pressão cria uma força que empurra o tímpano para dentro, em direção ao ouvido médio. O mecanismo automático de abertura da tuba auditiva, que depende de ações como engolir, pode não ser rápido o suficiente para acompanhar a mudança brusca de pressão externa.
As consequências dessa proeminência atípica do tímpano são duplas:
1. Sensação de ouvido tampado: Um tímpano esticado e tenso não consegue vibrar adequadamente. A transmissão do som fica prejudicada, resultando na sensação de audição abafada ou "entupida".
2. Dor: O tímpano é ricamente inervado. Seu estiramento (distensão) estimula terminações nervosas de dor, causando o desconforto que pode variar de leve a muito intenso, dependendo da magnitude da diferença de pressão.
O cenário da subida - a pressão que expande: Quando subimos a serra, ocorre o processo inverso. Começamos em uma altitude mais baixa, com maior pressão atmosférica. Conforme subimos, a pressão externa diminui rapidamente.
Agora, a pressão do ar dentro do ouvido médio é maior do que a pressão do lado de fora. Essa diferença de pressão empurra o tímpano para fora. Geralmente, este processo é menos desconfortável. É mais fácil para o corpo expelir o excesso de ar do ouvido médio através da tuba auditiva do que forçar a entrada de ar contra uma pressão externa maior. Por isso, muitas pessoas sentem menos incômodo na subida do que na descida. O "estouro" que às vezes ouvimos é o som do ar escapando e o tímpano voltando à sua posição normal.
Em ambos os casos, o desconforto é um sinal de que a tuba auditiva não está conseguindo realizar sua função de equalização com a velocidade necessária para acompanhar a mudança de altitude.
A equalização – como aliviar o desconforto
Felizmente, não somos passageiros passivos nesse processo. Sabendo que o problema é uma tuba auditiva "preguiçosa", podemos tomar medidas ativas para ajudá-la a abrir e a fazer seu trabalho de equalização.
Técnicas simples e eficazes: As estratégias mais eficazes envolvem a ativação dos músculos que controlam a abertura da tuba auditiva.
• Mastigar e engolir: Atos como mascar chiclete, beber água em pequenos goles ou simplesmente engolir a própria saliva forçam a abertura da tuba auditiva, permitindo que o ar entre no ouvido médio durante a descida e restaure o equilíbrio.
• Bocejar: Um bocejo, real ou forçado, é uma das maneiras mais eficazes de abrir a tuba auditiva, pois envolve uma contração muscular potente na região da garganta.
A Manobra de Valsalva - a equalização forçada: Para diferenças de pressão mais persistentes, uma técnica chamada Manobra de Valsalva pode ser utilizada. Ela consiste em:
1. Inspirar normalmente.
2. Fechar a boca e tapar firmemente as narinas com os dedos.
3. Expirar suavemente, como se estivesse tentando assoar o nariz, mas com as vias de saída bloqueadas.
Essa ação aumenta a pressão na parte de trás do nariz (nasofaringe), forçando o ar a subir pela tuba auditiva e a entrar no ouvido médio, "inflando-o" por dentro e empurrando o tímpano de volta à sua posição neutra. Um "clique" ou "estalo" no ouvido geralmente indica que a manobra foi bem-sucedida. É fundamental que essa manobra seja feita com suavidade, pois uma força excessiva pode, em casos raros, causar danos ao ouvido.
Um aviso importante: A Manobra de Valsalva não deve ser realizada por pessoas que estão resfriadas, com sinusite ou com qualquer tipo de congestão nasal. O motivo é simples: ao forçar o ar para o ouvido médio, você pode acabar empurrando também muco e bactérias da nasofaringe para dentro da câmara do ouvido médio. Isso cria um ambiente propício para uma infecção dolorosa, conhecida como otite média.
Conclusão: desmistificando o desconforto
A sensação de ouvido tampado ao descer uma serra é, portanto, muito mais do que um simples incômodo. É o resultado direto do peso do "oceano de ar" sobre nós, interagindo com a delicada membrana do nosso tímpano. Nosso corpo, equipado com a notável tuba auditiva, possui um sistema engenhoso para lidar com esse desafio, mas ele pode ser sobrecarregado por mudanças rápidas ou prejudicado por doenças.
Compreender esse mecanismo nos dá poder. A sensação deixa de ser um mistério irritante e se torna um fenômeno compreensível. Sabemos agora que não é um sinal de algo grave, mas sim um chamado para a ação: um lembrete para engolir, bocejar ou mascar um chiclete. É um convite para participarmos ativamente na manutenção do delicado equilíbrio que nosso corpo se esforça para manter. Da próxima vez que sentir seus ouvidos se fecharem na descida da serra, saiba que com um simples bocejo, poderá ajudar seu corpo a encontrar o equilíbrio mais uma vez.



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