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A função das ranhuras nos pneus e a prevenção da aquaplanagem

  • Foto do escritor: Patrick Vizzotto
    Patrick Vizzotto
  • 6 de nov.
  • 9 min de leitura

O desempenho dos pneus em piso molhado depende de sulcos, ranhuras e manutenção adequada para evitar aquaplanagem e perda de controle do veículo.


carro passando em uma estrada com água

O controle de veículos em pista molhada é comprometido quando a água reduz o atrito entre pneus e asfalto, provocando aquaplanagem. O desenho da banda de rodagem, a profundidade dos sulcos e a velocidade adequada são fatores determinantes para garantir aderência, tração e frenagem, prevenindo acidentes e mantendo a segurança do motorista.


Introdução

O pneu de um veículo é um objeto de complexidade notável, equilibrando demandas físicas que muitas vezes parecem contraditórias: precisa ser elástico o suficiente para absorver impactos e rígido o suficiente para manter a forma; deve ter a menor resistência possível ao rolamento para economizar energia, mas a máxima capacidade de atrito para frear e curvar. Contudo, talvez o maior desafio de design do pneu seja o seu desempenho em condições úmidas, onde a água se interpõe entre a borracha e o asfalto.


Em um dia seco, a interação entre o pneu e o pavimento é relativamente previsível, regida primariamente pela mecânica da fricção e pela composição química dos materiais. Mas quando a chuva cai e as estradas se cobrem de uma fina camada de água, toda a dinâmica do veículo é alterada.


É neste cenário que o desenho da banda de rodagem, uma característica que é ignorada em condições secas, assume um papel vital de segurança. Este texto se propõe a desvendar a física por trás da locomoção em piso molhado, explicando a função dos sulcos e drenos do pneu e detalhando o fenômeno da aquaplanagem, que transforma o controle veicular em uma experiência de deslizamento.

 

I. O requisito fundamental: atrito e aderência

Para que um veículo possa acelerar, frear ou mudar de direção, ele depende totalmente da força de atrito estático. Essa força é a reação do solo que se opõe ao deslizamento do pneu, permitindo que o ponto de contato permaneça momentaneamente em repouso em relação à pista. A intensidade máxima desta força de atrito estático (Femáx) é o limite que define a segurança do veículo e é diretamente proporcional à força de reação que o asfalto faz no pneu (Força Normal, N) e ao coeficiente de atrito (µe) entre a borracha e o pavimento.


Em condições ideais de pista seca e limpa, o coeficiente de atrito estático entre a borracha e o asfalto é alto, muitas vezes aproximando-se ou superando o valor de 1,0. Neste ambiente de alta aderência, a engenharia do pneu de competição – o pneu "slick" (liso) – busca maximizar o desempenho.


O pneu slick é desprovido de ranhuras e sulcos. Sua estratégia é oferecer a maior superfície de contato possível com o pavimento, o que, embora não aumente o limite máximo teórico do atrito, ajuda a distribuir as forças de compressão e a gerenciar a temperatura da borracha, fatores importantes para a durabilidade em alta performance.


Em pista seca, o slick é superior porque, ao eliminar os sulcos, maximiza a quantidade de borracha aderente, otimizando a capacidade de frenagem e tração, já que não há água para expulsar.

 

II. A água: o agente separador e o colapso do atrito

O cenário muda drasticamente quando a pista fica molhada. A água é, do ponto de vista da física da superfície, um agente lubrificante e, o que é mais problemático, um agente separador.


Quando uma roda passa sobre uma superfície molhada, a água se interpõe entre a borracha e as micro-rugosidades do asfalto, reduzindo drasticamente o coeficiente de atrito estático. Essa redução ocorre porque a água impede o contato molecular íntimo e a interpenetração microscópica entre a borracha (viscoelástica) e a superfície do pavimento (áspera) — mecanismos essenciais para a alta aderência.


Em uma estrada com uma fina película de água, o atrito já é reduzido, mas a situação mais perigosa é a aquaplanagem (ou hidroplanagem), definida como a formação de uma lâmina de água entre a pista e o pneu, capaz de suprimir o atrito da pista com o pneu. Quando a aquaplanagem ocorre, o pneu perde completamente o contato com o pavimento, sendo sustentado unicamente pela pressão hidrodinâmica da água. Nesse momento, o coeficiente de atrito estático (µe) cai virtualmente a zero. O motorista perde o controle total sobre a direção, a frenagem e a tração, pois o veículo está flutuando sobre uma camada de fluido incompressível.

 

III. A engenharia da drenagem: ranhuras e sulcos

Para combater a ameaça da aquaplanagem e reestabelecer o atrito estático em pisos molhados, a engenharia do pneu de rua recorre ao desenho da banda de rodagem, sacrificando a área de contato total do slick em prol da capacidade de expulsão de fluidos.


Os pneus de rua são classificados como pneus de nervura e possuem sulcos e ranhuras com funções específicas:


1. Nervura Central: Mantém um contato "circunferencial" do pneu com o piso, o que é fundamental para proporcionar manobrabilidade e aderência do pneu com a pista de rolamento.


2. Blocos: São os segmentos de borracha que proporcionam a tração e a frenagem, interagindo diretamente com o solo.


3. Sulcos e Drenos: Esta é a característica mais vital para a segurança em pista molhada. Os sulcos são canais profundos na banda de rodagem, e os drenos são sulcos auxiliares.


A função primordial dos sulcos e drenos é a drenagem (expulsão) da água e lama da área de contato do pneu com o solo.


Quando o pneu rola sobre uma superfície molhada, a água na frente da área de contato é forçada a entrar nos canais dos sulcos. O movimento de rolamento e a pressão exercida pelo peso do veículo fazem com que essa água seja rapidamente ejetada para as laterais do pneu, permitindo que a borracha retorne ao contato direto com o asfalto.


Ao garantir que a borracha toque o pavimento, os sulcos aumentam a aderência em piso molhado, minorando a possibilidade indesejável de aquaplanagem.

 

IV. A hidrodinâmica da elevação (hydrodynamic lift)

Para entender a aquaplanagem em profundidade, precisamos examinar a física dos fluidos. O fenômeno não é apenas uma "lubrificação" da pista, mas uma elevação hidrodinâmica que anula o contato sólido-sólido.


Quando o pneu atinge uma camada de água de profundidade suficiente em alta velocidade, ele começa a atuar como a proa de um barco ou um esqui aquático. A água não tem tempo hábil para ser deslocada e, em vez disso, acumula-se na frente do pneu, sendo comprimida. Essa compressão gera uma pressão hidrodinâmica sob a banda de rodagem.


A pressão hidrodinâmica aumenta drasticamente com a velocidade e a profundidade da água. Se essa pressão gerada pela água for suficiente para superar a pressão de contato exercida pelo pneu na estrada (que é determinada pelo peso do veículo e pela pressão de calibragem), o pneu é literalmente levantado da pista.


No momento em que o pneu é levantado, ele deixa de ser um objeto de atrito estático e se torna um objeto flutuante, totalmente desvinculado do asfalto. O atrito, que antes fornecia a tração e a capacidade de curva, desaparece. O carro desliza sobre a película de água, e a direção e o freio se tornam ineficazes.

 

O papel crítico da velocidade

A velocidade é o fator que mais rapidamente intensifica a aquaplanagem. A pressão hidrodinâmica aumenta de forma quadrática com a velocidade. Mesmo que o desenho do sulco seja eficiente, a capacidade de drenagem é finita. Chega um ponto em que a vazão de água que o pneu encontra em seu caminho excede a vazão máxima que os sulcos podem expelir para os lados.


Em geral, quanto menor a pressão do pneu (o que aumenta a área de contato, mas diminui a pressão por unidade de área) e quanto maior a velocidade e a profundidade da água, mais fácil será a aquaplanagem. A redução da velocidade em pista molhada é, portanto, a ação mais eficaz para dar tempo ao sistema de drenagem do pneu de realizar seu trabalho e manter o atrito.

 

V. O limite crítico: a importância dos 1,6 mm

A discussão sobre a segurança em pisos molhados leva-nos diretamente ao tema do desgaste dos pneus e ao limite legal de 1,6 mm para a profundidade do sulco na banda de rodagem.


A manutenção da profundidade do sulco é uma exigência de segurança relacionada à capacidade de drenagem. À medida que o pneu se desgasta, os sulcos se tornam mais rasos. Uma profundidade menor significa um volume menor disponível para a água ser coletada e expelida.


Se a profundidade do sulco atinge menos de 1,6 mm, a capacidade de drenagem do pneu é drasticamente comprometida. A vazão de água que o pneu é capaz de manusear em uma determinada velocidade diminui, e a velocidade na qual a aquaplanagem pode ocorrer cai perigosamente. Um pneu novo pode resistir à aquaplanagem em velocidades significativamente mais altas do que um pneu com 1,6 mm de sulco.

 

O paradoxo do desgaste revisitado

Este requisito de drenagem contrasta com um achado curioso sobre o atrito em piso seco, conforme demonstrado por estudos de dinâmica veicular. Pneus que já rodaram algumas centenas de quilômetros e estão ligeiramente desgastados (mas ainda bem acima de 1,6 mm) podem apresentar um coeficiente de atrito estático com a pista seca maior (aproximadamente 1,0) do que pneus totalmente novos (cerca de 0,85).


Essa superioridade do atrito em piso seco de um pneu condicionado é atribuída à remoção de resíduos de fabricação e ao assentamento do composto de borracha, otimizando o contato molecular com o asfalto.


No entanto, a engenharia de segurança de trânsito não pode se basear apenas no desempenho em piso seco. O limite de 1,6 mm existe porque a segurança na chuva deve sempre prevalecer. Mesmo que o pneu ligeiramente desgastado ofereça um atrito máximo superior em seco, sua capacidade de drenagem em pista molhada é inferior à de um pneu novo. A regra de 1,6 mm é, portanto, um ponto de inflexão crítico onde a física da segurança hídrica se sobrepõe à física da aderência máxima em seco.

 

VI. Gerenciando a aderência em condições adversas

A segurança em pisos molhados é uma função da manutenção do pneu e da consciência do motorista sobre os limites físicos impostos pela água.

 

O Efeito da Pressão na Drenagem

A correta manutenção da pressão interna do pneu é um fator indireto, mas importante, na prevenção da aquaplanagem.


Como discutido em relação à resistência ao rolamento, a pressão adequada minimiza a região deformada do pneu. Embora a principal função da pressão seja diminuir a resistência ao rolamento, um pneu com pressão baixa se achata excessivamente, alterando a geometria da área de contato. A banda de rodagem não deforma os sulcos de maneira otimizada para a expulsão da água, e a pressão exercida pelo pneu no asfalto pode ser insuficiente para perfurar a lâmina de água, facilitando a elevação hidrodinâmica.


A verificação periódica da pressão, idealmente no "pneu frio", é um ato de manutenção que assegura não só a durabilidade e a eficiência energética, mas também a capacidade do pneu de desempenhar sua função de drenagem de forma eficiente. Uma pressão baixa pode levar ao aumento da região deformada e à alteração da temperatura, o que pode desgastar o pneu rapidamente e, se o desgaste atingir o limite de 1,6 mm, o risco de aquaplanagem aumenta exponencialmente.

 

O uso estratégico de pneus novos

A recomendação técnica de colocar pneus novos no eixo traseiro quando apenas dois pneus são trocados está intimamente ligada à prevenção da aquaplanagem.


O eixo traseiro é fundamental para a estabilidade direcional do veículo. Se o eixo traseiro perde a aderência primeiro (seja por aquaplanagem ou derrapagem lateral), o veículo tende a girar sobre si mesmo, um fenômeno conhecido como sobreviragem (ou oversteer), que é extremamente difícil de corrigir para a maioria dos motoristas.


Ao colocar pneus novos, com sulcos mais profundos e, portanto, com máxima capacidade de drenagem, no eixo traseiro, garante-se que o eixo mais crítico para a estabilidade em pista molhada seja o último a aquaplanar. Essa é uma medida preventiva que visa mitigar a perda catastrófica de controle em situações de emergência sob chuva. Mesmo que os pneus dianteiros (responsáveis pela maior parte da frenagem) sejam ligeiramente mais desgastados (mas ainda legais) e ofereçam um atrito superior em seco, a garantia de que o eixo traseiro permaneça estável e drenado é a prioridade máxima em segurança veicular.

 

VII. A complexidade do desenho da banda de rodagem

A banda de rodagem moderna não é apenas um conjunto aleatório de sulcos; é o resultado de complexos estudos de fluidodinâmica. O desenho inclui diferentes tipos de ranhuras, cada uma com funções específicas:


1. Ranhuras Circunferenciais (Longitudinais): Correm ao longo do pneu. Elas são os principais canais para coletar e direcionar a água para trás, impedindo que se acumule sob a banda central.


2. Ranhuras Laterais (Transversais): Movem a água dos canais longitudinais para as bordas do pneu, ejetando-a para fora da área de contato.


3. Sipes (Lamelas): São pequenas ranhuras finas, frequentemente encontradas nos blocos de borracha. Elas não são tão profundas quanto os sulcos principais, mas sua função é igualmente vital: criar bordas adicionais para "morder" a fina película de água superficial melhorando o atrito em microescala. O sipe melhora a aderência ao quebrar a tensão superficial da água na interface borracha-asfalto.


Um pneu de qualidade é aquele onde o desenho garante uma taxa de vazio (a proporção da área da banda de rodagem ocupada pelos sulcos) que é alta o suficiente para expelir a água, mas baixa o suficiente para manter a rigidez dos blocos de borracha sob esforço lateral.

Se o desenho da banda de rodagem for falho, a água pode ser ejetada de forma ineficiente ou direcionada de volta para a área de contato, ou ainda, gerar turbulência aerodinâmica que, além de ruído, prejudica a estabilidade.

 

VIII. Conclusão

A segurança de um veículo em condições adversas reside na capacidade do pneu de realizar sua função hidrodinâmica. O desenho da banda de rodagem, com suas nervuras, sulcos e drenos, é o mecanismo de engenharia que enfrenta o desafio de manter a aderência, transformando a água de um agente separador em um fluido controlável.


A aquaplanagem, definida pela supressão total do atrito pela lâmina de água, é o colapso do sistema. A prevenção desse fenômeno é alcançada através de três fatores inseparáveis: o desenho eficaz das ranhuras e sulcos, a manutenção da profundidade desses sulcos (acima de 1,6 mm) e a adaptação da velocidade do motorista às condições de pista, dando tempo suficiente para que a física da drenagem reestabeleça o contato.

 
 
 

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