Por que existem motores a diesel e a gasolina?
- Patrick Vizzotto
- 16 de set.
- 10 min de leitura
Atualizado: 24 de set.
Gasolina e diesel movem diferentes tipos de veículos por meio de princípios distintos de combustão, torque e potência.

Introdução
No coração de quase todos os veículos que cruzam nossas ruas, estradas e oceanos, pulsa um motor a combustão interna. Esse tipo de motor, há mais de um século, transforma a energia química de combustíveis em movimento, é a força motriz da nossa sociedade moderna. De carros de passeio a gigantescos navios cargueiros, passando por tratores que aram nossos campos, a onipresença dos motores é inegável. No entanto, ao abrir o capô de um carro ou observar um caminhão em funcionamento, a maioria de nós vê apenas um emaranhado complexo de peças metálicas, sem compreender o que ocorre em seu interior.
Por que existem tantos tipos de motores? Por que um carro de passeio comumente usa gasolina ou etanol, enquanto um caminhão depende do diesel? Se os motores a diesel são conhecidos por sua força, por que não equipam todos os veículos? E o que significam as enigmáticas siglas como Diesel S10 e S500 nas bombas de combustível?
Como funciona um motor de quatro tempos?
Antes de explorarmos as diferenças, é essencial compreender o princípio básico que une a maioria dos motores de carros, motos e caminhões: o ciclo de quatro tempos. Imagine o interior do motor como um conjunto de seringas. Cada "seringa" é chamada de cilindro, e a parte móvel interna, que sobe e desce, é o pistão. O movimento de vai e vem do pistão é transformado em um movimento rotativo por um eixo engenhoso chamado virabrequim, que, ao final, fará as rodas girarem.
Essa transformação de energia ocorre em uma sequência de quatro etapas ou "tempos", que se repetem milhares de vezes por minuto:
1. Primeiro Tempo: Admissão. O ciclo começa com o pistão no topo do cilindro. Ele desce, criando um vácuo. Nesse momento, uma ou mais válvulas de admissão se abrem, permitindo que uma mistura de ar e combustível (no caso dos motores a gasolina) ou apenas ar (nos motores a diesel) seja aspirada para dentro do cilindro, preenchendo o espaço.
2. Segundo Tempo: Compressão. Com o cilindro cheio, as válvulas de admissão se fecham. O pistão então inverte seu curso e sobe, comprimindo violentamente a mistura (ou o ar) em um espaço minúsculo no topo do cilindro, chamado de câmara de combustão. Essa compressão aumenta drasticamente a pressão e a temperatura dentro do cilindro.
3. Terceiro Tempo: Combustão (ou Explosão). Este é o momento mágico, o tempo de potência, onde a energia é liberada. No exato instante em que o pistão atinge o ponto máximo de compressão, ocorre a queima do combustível. A maneira como essa queima é iniciada é a diferença mais fundamental entre um motor a gasolina e um a diesel. A energia liberada pela combustão gera uma expansão de gases extremamente rápida e poderosa, empurrando o pistão para baixo com uma força imensa. É essa força que, transmitida ao virabrequim, gera o trabalho útil do motor.
4. Quarto Tempo: Escape (ou Exaustão). Após a combustão, o cilindro está cheio de gases queimados (fumaça). Para preparar o cilindro para um novo ciclo, o pistão sobe novamente. Desta vez, as válvulas de escape se abrem, e o pistão empurra todos os gases residuais para fora, através do sistema de escapamento do veículo.
Completado o quarto tempo, as válvulas de escape se fecham, as de admissão se abrem, e o ciclo recomeça. Em um motor com múltiplos cilindros (três, quatro, seis ou mais), esses quatro tempos ocorrem de forma assíncrona. Enquanto um cilindro está na admissão, outro está na combustão, outro na compressão e assim por diante. Essa sincronia, controlada por uma peça chamada comando de válvulas, garante que o motor funcione de maneira suave e contínua, sem trancos, com um cilindro sempre fornecendo potência enquanto os outros realizam as demais etapas.
A grande divisão: Ciclo Otto (Gasolina/Flex) vs. Ciclo Diesel
Agora que entendemos o ritmo básico, podemos explorar as duas grandes "filosofias" de funcionamento dos motores a combustão: o Ciclo Otto, que rege os motores a gasolina, etanol e GNV, e o Ciclo Diesel.
O Motor a Gasolina (Ciclo Otto): A Ignição por Faísca
O motor a gasolina, também conhecido como motor de ciclo Otto, é caracterizado por um componente crucial: a vela de ignição. Vamos revisitar os quatro tempos sob sua ótica:
• Admissão: O cilindro aspira uma mistura já pronta de ar e combustível. Essa mistura é preparada antes de entrar no cilindro, seja por um carburador (em carros mais antigos) ou, mais comumente hoje, por bicos injetores que pulverizam o combustível no fluxo de ar.
• Compressão: A mistura ar-combustível é comprimida pelo pistão. A taxa de compressão – a proporção entre o volume total do cilindro e o volume da câmara de combustão – é moderada. Em carros de passeio, ela geralmente fica entre 8:1 e 14:1, o que significa que a mistura é comprimida entre 8 e 14 vezes.
• Combustão: No pico da compressão, uma pequena peça chamada vela de ignição recebe uma alta voltagem e gera uma faísca elétrica dentro da câmara de combustão. Essa faísca inicia a queima da mistura comprimida. A queima é extremamente rápida, quase uma explosão controlada, que pode ser comparada a uma "martelada" na cabeça do pistão, gerando um impulso forte e rápido.
• Escape: O processo é idêntico, com os gases resultantes sendo expelidos.
A aceleração em um motor a gasolina é controlada por uma borboleta de aceleração. Ao pisar no acelerador, você abre essa válvula, permitindo que mais mistura ar-combustível entre nos cilindros, gerando mais potência e aumentando a rotação do motor.
Os motores Flex, predominantes no Brasil, são uma variação inteligente do motor de ciclo Otto. Eles são equipados com sensores, principalmente a sonda lambda no escapamento, que analisam os gases da queima e identificam a proporção de etanol e gasolina no tanque. Com base nessa informação, a central eletrônica do motor ajusta parâmetros como o tempo de injeção de combustível e o ponto de ignição da faísca para otimizar o funcionamento para qualquer mistura dos dois combustíveis. Essa tecnologia é uma evolução direta do motor a gasolina, permitindo versatilidade ao consumidor.
O Motor a Diesel (Ciclo Diesel): A Ignição por Compressão
O motor a diesel, concebido por Rudolf Diesel, opera com uma lógica fundamentalmente diferente, dispensando a vela de ignição.
• Admissão: O cilindro aspira apenas ar puro, nada de combustível.
• Compressão: As válvulas se fecham, e o pistão sobe, comprimindo esse ar de forma muito mais intensa do que em um motor a gasolina. A taxa de compressão em motores a diesel é extremamente elevada, variando de 15:1 a mais de 24:1. Essa compressão brutal eleva a temperatura do ar dentro do cilindro a níveis altíssimos, podendo chegar a 800°C. O ar fica tão quente que se torna incandescente.
• Combustão: No momento exato em que o pistão atinge o topo e a compressão (e temperatura) do ar está no máximo, um bico injetor de altíssima pressão pulveriza o óleo diesel diretamente dentro da câmara de combustão. Ao entrar em contato com o ar superaquecido, o diesel se inflama espontaneamente, sem a necessidade de nenhuma faísca. A queima do diesel é mais lenta e progressiva que a da gasolina, assemelhando-se mais a um "empurrão" contínuo no pistão do que a uma martelada.
• Escape: O processo de exaustão é o mesmo, expelindo os gases resultantes.
Nos motores a diesel, a aceleração não é controlada pela entrada de ar (geralmente não há borboleta de aceleração), mas sim pela quantidade de diesel injetado. Quando o motorista pisa no acelerador, a bomba injetora simplesmente envia mais combustível para os cilindros, gerando uma combustão mais energética e, consequentemente, mais força.
A Batalha dos Titãs: Torque vs. Potência
As diferenças fundamentais no modo de funcionamento resultam em características de desempenho muito distintas. Isso nos leva à uma questão central: se o motor a diesel tem mais torque, por que nem todos os veículos o utilizam? A resposta está no equilíbrio entre duas grandezas: torque e potência.
O torque pode ser entendido como a força de rotação do motor. É a capacidade de aplicar força para girar o virabrequim. Pense em tentar soltar um parafuso muito apertado com uma chave de roda. A força que você aplica na alavanca é o torque. Um motor com alto torque é excelente em mover cargas pesadas a partir da inércia e em manter a velocidade em subidas íngremes. É a "força bruta" do motor.
A potência, por outro lado, é a rapidez com que essa força é aplicada ao longo do tempo. É o resultado da multiplicação do torque pela rotação do motor (RPM). Um motor potente pode não ter a mesma força inicial, mas é capaz de realizar trabalho muito rapidamente, o que se traduz em altas velocidades e acelerações rápidas.
Por que o motor a diesel gera mais torque?
Diversos fatores de projeto, decorrentes de seu princípio de funcionamento, contribuem para a supremacia do diesel em torque:
1. Curso longo do pistão: Para alcançar as altíssimas taxas de compressão necessárias, os motores a diesel são projetados com um curso de pistão mais longo. Isso significa que a distância que o pistão percorre de cima a baixo do cilindro é maior. Esse curso longo cria uma alavanca maior no virabrequim. Voltando à analogia da chave de roda, um curso longo é como usar uma chave com um cabo mais comprido: você precisa de menos esforço para gerar a mesma força de torção.
2. Alta taxa de compressão: A compressão extrema não só aquece o ar, mas também permite extrair mais energia de cada gota de combustível. A expansão dos gases após a combustão é mais forte, aplicando mais força sobre o pistão.
3. Combustão lenta e contínua: O "empurrão" prolongado do diesel, em vez da "martelada" da gasolina, aplica força sobre o pistão por um período maior de seu curso descendente, o que se traduz em mais torque.
4. Natureza do combustível: O próprio óleo diesel possui uma densidade energética ligeiramente maior que a da gasolina, liberando um pouco mais de energia por litro queimado.
Por que o motor a gasolina gera mais potência?
O motor a gasolina, por sua vez, é o rei da potência pela seguinte razão:
Altas Rotações (RPM): O curso mais curto do pistão e a natureza explosiva e rápida da combustão permitem que o motor a gasolina gire muito mais rápido. Enquanto um motor a diesel de um carro de passeio raramente ultrapassa 5.000 RPM, um motor a gasolina pode facilmente atingir 6.000, 8.000 ou até mais rotações por minuto. Como a potência é torque vezes rotação, mesmo com um torque menor, a altíssima velocidade de rotação resulta em uma potência final muito maior.
A escolha certa para cada aplicação
Agora, a resposta para a pergunta "por que nem todo motor é a diesel?" fica clara. É uma questão de adequação.
• Veículos de carga (Caminhões, Ônibus, Tratores, Navios): Precisam de muito torque em baixas rotações para tirar toneladas de peso da imobilidade, subir ladeiras carregados e puxar implementos pesados. A velocidade final não é a prioridade. A robustez e a economia de combustível do diesel (devido à sua maior eficiência energética e relação estequiométrica mais pobre) também são vantagens importantes para operações comerciais.
• Carros de passeio e esportivos: Priorizam agilidade, aceleração e altas velocidades, características que dependem da potência. Além disso, motores a gasolina são geralmente mais leves, mais silenciosos, vibram menos e são mais baratos de produzir do que os robustos e pesados motores a diesel, que precisam de componentes superdimensionados para suportar as altas pressões internas.
Portanto, não existe um motor "melhor" em termos absolutos, mas sim o motor mais adequado para uma determinada função. A engenharia busca o melhor compromisso entre essas características para atender às necessidades de cada veículo.
Decifrando o Diesel: S10 vs. S500
Para os proprietários de veículos a diesel, uma dúvida comum surge na hora de abastecer: qual a diferença entre o diesel S500 e o S10? A resposta está na química e, principalmente, no impacto ambiental.
A letra "S" refere-se ao enxofre (símbolo químico S), e o número indica a quantidade máxima desse elemento no combustível, medida em partes por milhão (ppm).
• Diesel S500: Contém até 500 miligramas de enxofre por quilo de diesel. É um combustível mais antigo, destinado a veículos fabricados até 2012. Ele possui uma coloração avermelhada para facilitar a identificação.
• Diesel S10: É um combustível muito mais moderno e limpo, contendo no máximo 10 miligramas de enxofre por quilo de diesel – 50 vezes menos que o S500. Sua coloração é amarelada.
Por que reduzir o enxofre?
A drástica redução no teor de enxofre foi motivada por questões ambientais. Durante a combustão no motor, o enxofre reage com o oxigênio e, ao ser liberado na atmosfera, pode se misturar com a água presente no ar, formando ácido sulfúrico. Esse composto é um dos principais causadores da chuva ácida, um grave problema ambiental que danifica ecossistemas, construções e a saúde humana.
Além do benefício ambiental, o diesel S10 apresenta outras vantagens técnicas:
• Maior Número de Cetano: Enquanto na gasolina medimos a octanagem (resistência à detonação), no diesel medimos a cetanagem, que indica a facilidade e a qualidade da ignição. O S10 possui um número de cetano médio de 48, enquanto o S500 tem 42. Um cetano mais alto significa que o diesel entra em combustão mais rapidamente e de forma mais completa após ser injetado. Isso resulta em um melhor aproveitamento energético, partidas mais fáceis, menos ruído e emissão de menos fumaça (material particulado).
• Compatibilidade com tecnologias modernas: Veículos a diesel fabricados a partir de 2012 são equipados com sistemas complexos de pós-tratamento de gases de escape para atender a normas de emissões cada vez mais rígidas. Esses sistemas são extremamente sensíveis ao enxofre e só podem operar com o diesel S10. Usar S500 em um motor moderno pode danificar permanentemente esses componentes caros.
É importante notar que, embora o enxofre tenha propriedades lubrificantes, os combustíveis S10 modernos recebem aditivos para compensar essa redução e garantir a lubrificação adequada dos componentes do sistema de injeção.
Conclusão
Os motores a combustão interna são uma sinfonia de física e química, uma coreografia precisa de peças que se movem em harmonia para gerar a força que impulsiona nosso mundo. Vimos que a escolha entre um motor a gasolina e um a diesel não é arbitrária, mas uma decisão de engenharia baseada em um delicado balanço entre força bruta (torque) e velocidade (potência).
O motor a gasolina, com sua ignição por faísca e altas rotações, oferece a agilidade e a velocidade que desejamos em nossos carros de passeio. O motor a diesel, com sua ignição por compressão e curso longo, fornece o torque monumental necessário para mover as cargas mais pesadas, tornando-se a espinha dorsal do transporte e da agricultura. As evoluções nos combustíveis, como o diesel S10, demonstram um esforço contínuo para tornar essa tecnologia mais limpa e eficiente, respondendo às crescentes preocupações ambientais.
Da próxima vez que você ouvir o ronco de um motor, seja o zumbido agudo de um carro esportivo ou o som grave de um caminhão, saberá que não está apenas ouvindo ruído, mas sim a manifestação audível de princípios de engenharia distintos, cada um perfeitamente afinado para sua própria melodia na grande sinfonia da mobilidade moderna. E embora o futuro aponte para novas fontes de energia, como a eletricidade, o legado e o gênio do motor a combustão interna permanecerão como um dos pilares da revolução industrial e da sociedade que construímos.



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