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Mais largura, mais aderência? O que a física diz sobre pneus de passeio

  • Foto do escritor: Patrick Vizzotto
    Patrick Vizzotto
  • 21 de ago.
  • 11 min de leitura

Atualizado: 24 de set.

Quando falamos em aderência, a primeira ideia que surge é que pneus mais largos garantem mais atrito, mas a física mostra que essa relação não é tão direta quanto parece.


veículo de fórmula 1

A cena é familiar para qualquer entusiasta de esportes a motor: carros de Fórmula 1 e motos de alta performance exibem pneus de largura impressionante, muito maiores do que aqueles que vemos em veículos comuns nas ruas. A intuição imediata, e amplamente difundida, sugere que essa largura extra se traduz diretamente em mais aderência ou atrito com o asfalto, proporcionando maior capacidade de frenagem, aceleração e estabilidade em curvas. Mas será que essa crença popular se sustenta?

 

O que é atrito, afinal? desvendando a intuição comum

Para começar a desmistificar a relação entre a largura do pneu e a aderência, precisamos primeiro entender o conceito de atrito. Imagine a seguinte situação: você tem uma caixa sobre uma superfície áspera. Se essa caixa estiver deitada, cobrindo uma área maior, a sua intuição pode levá-lo a pensar que será mais difícil arrastá-la do que se estivesse em pé, pois haveria "mais área de contato" e, portanto, "mais asperezas resistindo ao deslizamento". Essa é uma das concepções mais comuns e, surpreendentemente, equivocadas, sobre o atrito.


Na verdade, a área de contato aparente – ou seja, a área visível de contato entre duas superfícies – não tem influência direta sobre a intensidade da força de atrito. Essa é uma descoberta contraintuitiva, mas firmemente estabelecida experimentalmente. Já no século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) observou experimentalmente que o valor máximo da força de atrito entre duas superfícies sólidas é independente da área de contato, mas depende da intensidade da força de compressão entre elas (a força normal) e da natureza das superfícies (como o material e o grau de polimento). Cientistas posteriores, como Charles Augustin Coulomb (1736-1806), confirmaram esses resultados experimentais.


Para entender por que isso acontece, precisamos considerar dois fatores interligados:


1. Pressão e Força Normal: A pressão é definida como a força normal aplicada sobre uma determinada área (Pressão = Força Normal / Área). Se a força normal (que é a força de reação exercida por uma superfície sobre um objeto que a pressiona, ou seja, que está em contato com ela, e é sempre perpendicular à superfície de contato) permanece constante – como o peso da caixa, que não muda independentemente de como ela está deitada ou em pé – e a área de contato aumenta, o que acontece com a pressão? Ela diminui.


2. Contato Microscópico: As superfícies, mesmo as que parecem lisas a olho nu, são repletas de rugosidades microscópicas, como pequenas montanhas e vales. O atrito surge da interação entre essas irregularidades. Quando há uma pressão maior entre as superfícies, essas rugosidades se encaixam mais profundamente, gerando mais resistência ao movimento. Por outro lado, quando a pressão é menor (devido a uma área de contato maior), as rugosidades ficam menos encaixadas, "afrouxadas", o que geraria menos atrito.


Aqui reside o ponto-chave: a natureza compensatória desses fenômenos. Embora uma área maior aparentemente aumente o número de pontos onde as rugosidades poderiam interagir, essa mesma área maior reduz a pressão, fazendo com que o encaixe microscópico seja menos intenso. Experimentalmente, verifica-se que essas duas contribuições se cancelam, resultando na independência da força de atrito em relação à área de contato aparente¹. A força de atrito cinético (quando há deslizamento) é diretamente proporcional à força normal, mas não tem relação com a área.

 

A realidade microscópica do contato: atrito e tribologia

A ciência que estuda o atrito é chamada de Tribologia. Ela nos oferece um modelo explicativo mais profundo para essa independência contraintuitiva. O modelo sugere que a área de contato efetiva em nível microscópico entre dois sólidos é muito menor do que a área aparente (macroscópica). Isso porque os corpos se tocam apenas em alguns "pontos" ou pequenas superfícies dentro da área aparente, como se dois pedaços de espuma se tocassem apenas em algumas regiões.


A intensidade máxima da força de atrito não depende da área aparente, mas sim do número desses "pontos" de contato, ou seja, da área efetiva. E mais importante ainda: a área efetiva de contato, mantida a área aparente constante, é diretamente proporcional à intensidade da força de compressão (a força normal). Isso significa que, se a força normal for constante e a área aparente diminuir, a pressão aumenta, e esse aumento de pressão fará com que o número de pontos de contato efetivos permaneça constante, mesmo que a área aparente tenha diminuído. Em outras palavras, em nível microscópico, a força de atrito máxima depende da área, desde que a área considerada seja a efetiva, e não a aparente. Esse modelo microscópico, que envolve a formação de "soldas" ou ligações eletromagnéticas em regiões microscópicas de contato, e sua subsequente ruptura, é um campo de pesquisa atual em física e pode ser bem mais complexo, inclusive envolvendo mecânica quântica.

 

O pneu e a aderência: adesão e indentação

Para que um veículo se mova, freie ou faça curvas, é fundamental que haja atrito entre o pneu e o solo. Os pneus não são simplesmente um bloco sólido; sua aderência é o resultado de dois mecanismos principais: a adesão e a indentação.


1. Indentação (ou Engate Mecânico): Este mecanismo é causado pelas rugosidades presentes na superfície da pista – que podem ser microscópicas (grãos de areia minúsculos) ou macroscópicas (pedrinhas maiores que compõem o asfalto). O pneu, sendo um material viscoelástico (veremos mais sobre isso adiante), deforma-se ao encontrar essas irregularidades na rua. À medida que o pneu se move, ele não retorna imediatamente à sua posição original, mantendo uma pequena deformação em contato com a rugosidade. Essa interação gera uma força de reação que tem uma componente horizontal, contribuindo para a força de atrito. As microrrugosidades são cruciais para a indentação, enquanto as macrorrugosidades, além de auxiliar, também ajudam a armazenar água em caso de chuva.


2. Adesão (Ligação Molecular): Este fenômeno ocorre em um nível molecular e requer contato direto entre o pneu e a pista. Resulta de interações moleculares na superfície de contato, como as ligações de Van der Waals. São ligações fracas que se formam, são esticadas e rompidas à medida que o pneu gira e se move sobre o solo. A energia liberada ao quebrar essas ligações contribui para a força de atrito. No entanto, a adesão é drasticamente comprometida se houver uma fina camada de água (como em piso molhado) que separe a superfície do pneu da superfície do asfalto.


O coeficiente de aderência (ou coeficiente de atrito, μ) não depende apenas da composição da borracha do pneu, mas também, e de forma mais significativa, do tipo e da condição do asfalto (seco, úmido ou molhado). Em asfaltos secos, o coeficiente varia pouco, geralmente entre 1 e 1,3. Quanto mais rugoso o asfalto seco, menor a área de rolamento efetiva e, paradoxalmente, um coeficiente de adesão ligeiramente menor. Já em asfaltos molhados, o coeficiente de aderência diminui drasticamente, podendo variar entre 0,1 e 0,9, dependendo do tipo de asfalto. Nesse cenário, as macrorrugosidades são essenciais para escoar a água, enquanto as microrrugosidades são fundamentais para manter o contato direto e a aderência. Um asfalto com micro e macrorrugosidades é o que oferece melhor desempenho em condições de chuva. Em resumo, a qualidade e condição da superfície da pista têm um impacto muito mais drástico no coeficiente de atrito do que a composição do pneu.

 

A essência viscoelástica da borracha do pneu

Para compreender plenamente o comportamento dos pneus, é crucial entender a borracha como um material viscoelástico. Essa característica significa que a borracha possui propriedades intermediárias entre um fluido viscoso (como mel, que se deforma continuamente sob força e não retorna à forma original) e um sólido elástico (como uma mola, que se deforma instantaneamente sob força e retorna à forma original sem perda de energia).


Podemos visualizar o comportamento viscoelástico como uma combinação de uma mola (representando a parte elástica) e um pistão ou amortecedor (representando a parte viscosa). Quando uma força é aplicada, a mola se deforma instantaneamente, mas o pistão oferece resistência dependente da velocidade de deformação. Nos materiais viscoelásticos, há uma dissipação parcial de energia (não total como nos fluidos viscosos, mas também não nula como nos sólidos elásticos) e um fenômeno chamado histerese: um atraso entre a aplicação da força e a deformação do material. Isso significa que a borracha do pneu se deforma e, ao retirar a força, retorna à sua posição original, mas com um certo atraso.


Em nível molecular, a borracha é composta por longas cadeias de polímeros. No processo de fabricação de pneus, a borracha passa pela vulcanização, um tratamento com enxofre que cria "pontos de solda" entre essas cadeias. Quando a borracha é solicitada (puxada ou comprimida), ocorre atrito entre as cadeias de moléculas, que se esfregam umas nas outras. É esse atrito molecular que gera a característica viscosa da borracha e a histerese.


O módulo de rigidez da borracha (relação entre tensão e deformação) e a histerese são afetados não apenas pela mistura de polímeros, mas também pela frequência de solicitação (que está ligada à velocidade de deformação do pneu) e pela temperatura.


Frequência de Solicitação: Em baixas frequências (como em uma rua lisa e suave ou a baixas velocidades), a parte elástica (mola) predomina, a histerese é baixa, e o material se comporta de forma mais elástica. Em altas frequências (como em uma rua muito rugosa ou a altas velocidades), a parte viscosa (pistão) predomina, a velocidade de deformação é maior, e a histerese se torna máxima, conferindo ao material um comportamento viscoelástico ideal para aderência. No entanto, em frequências muito, muito altas, a velocidade de solicitação pode exceder a velocidade natural de retorno das moléculas, tornando o material rígido e perdendo suas propriedades viscoelásticas.


Temperatura: A temperatura afeta a velocidade das moléculas na borracha. Temperaturas mais altas aumentam a flexibilidade, tornando o material mais elástico. Temperaturas muito baixas tornam a borracha excessivamente rígida e quebradiça, como vidro. Existe uma temperatura de transição vítrea (Tg), e as temperaturas de operação ideais para pneus estão próximas a ela, onde o comportamento viscoelástico e a histerese máxima são alcançados. A temperatura de transição vítrea também aumenta com a frequência de solicitação. Uma lei de equivalência, a lei WLF (William-Landel-Ferry), descreve como um aumento de dez vezes na frequência pode ser equivalente a uma redução de 7 a 8 graus Celsius na temperatura para o comportamento do material.


Essa relação com a temperatura é crucial para o desempenho dos pneus de corrida. É por isso que os pneus de Fórmula 1, por exemplo, são pré-aquecidos com mantas térmicas antes das corridas. Esse pré-aquecimento permite que os pneus atinjam rapidamente a temperatura ideal de uso, garantindo a melhor aderência possível à pista e evitando o "esfarelamento" (graining), que é a liberação de pequenos pedaços de borracha devido a temperaturas inadequadas. Os melhores tempos de volta geralmente são obtidos quando os pneus estão nessa faixa de temperatura ideal.

 

As verdadeiras razões por trás dos pneus largos

Agora que entendemos a complexidade do atrito e a natureza do material do pneu, podemos retornar à pergunta central: por que os pneus de Fórmula 1 ou motos de corrida são tão largos, se a área de contato não aumenta o atrito? A resposta, como já antecipado, desafia a intuição. Os pneus largos dos veículos de corrida não servem para um ganho substancial nas forças de atrito. A independência da força de atrito em relação à área de contato já foi estabelecida há séculos por Leonardo da Vinci.


As razões primordiais para a largura dos pneus em veículos de alta performance estão ligadas a outros fatores críticos:


1. Compensação de Desgaste e Volume de Borracha: A principal razão para os pneus de Fórmula 1 serem mais largos é para compensar o grande desgaste que sofrem durante uma corrida. Pneus de competição são projetados para máxima aderência e não para durabilidade, desgastando-se rapidamente. Um pneu mais largo simplesmente tem mais borracha disponível para ser desgastada. Isso significa que o volume de material que pode se "perder" ao longo da corrida é maior, permitindo que as trocas de pneus sejam menos frequentes. Além disso, para uma mesma força normal, um pneu mais largo exerce uma pressão menor na região de contato, o que também contribui para gerenciar o desgaste de forma mais eficiente.


2. Suporte de Carga e Forças Dinâmicas: Em competições como a Fórmula 1, os pneus estão sujeitos a forças imensas de tração, frenagem e, especialmente, curvas (forças laterais). Pneus mais largos são estruturalmente mais capazes de distribuir e suportar essas cargas extremas sem deformar excessivamente, superaquecer ou falhar. Não se trata de gerar mais atrito diretamente pela área, mas sim de ter uma estrutura de borracha mais robusta e um volume maior para suportar o regime de uso intenso sem entrar em colapso. Conforme mencionado por um engenheiro mecânico, se a tecnologia permitisse pneus mais finos que suportassem os mesmos esforços, os veículos de competição os utilizariam e fariam tempos melhores, provando que a largura atual é uma questão de engenharia e suporte de cargas, não de atrito inerente à área.


3. Aerodinâmica: A escolha por pneus mais largos em vez de pneus de maior raio (diâmetro) para compensar o desgaste é também uma otimização aerodinâmica. Um pneu de grande raio dificultaria a aerodinâmica do veículo, enquanto um pneu largo, mantendo um raio menor, pode ser mais vantajoso nesse aspecto.

 

O mito da calibragem baixa para maior "Grip"

Um ponto de discussão comum, especialmente entre pilotos de "track day" (dias de pista), é a prática de usar calibragem mais baixa nos pneus para "aumentar o grip" através do aumento da área de contato aparente pela deformação do pneu. Com base no que discutimos, essa ideia de que uma área de contato aparente maior aumenta a força de atrito (pela fórmula F = μN) é uma falácia, uma vez que a força de atrito não depende da área quando a força normal é constante.


Se o peso do veículo e do piloto não muda, a força normal também não muda significativamente nesse contexto. Portanto, uma mudança na área de contato aparente através da calibragem não levaria a um aumento direto na intensidade máxima da força de atrito conforme as leis clássicas do atrito.


Embora a força de atrito máxima (Fe ≤ µeN) não aumente com a área aparente, a deformação do pneu causada por uma pressão mais baixa pode afetar outros aspectos do desempenho. Por exemplo, uma maior deformação aumenta a temperatura do pneu (devido à histerese e à resistência ao rolamento), o que pode levar o composto de borracha para uma faixa de temperatura onde seu coeficiente de atrito é otimizado.


A forma da mancha de contato (contato patch) pode mudar, o que pode influenciar a forma como as forças são distribuídas e a capacidade do pneu de se "moldar" às irregularidades do asfalto em um nível micro-dinâmico, impactando a sensibilidade e o feedback para o piloto, mesmo que o valor máximo da força de atrito não mude devido à área per se.


A complexidade do sistema pneu-asfalto em condições dinâmicas de corrida vai além da simples equação do atrito, englobando também a distribuição de estresse, a dissipação de energia e a otimização da temperatura de operação. No entanto, a premissa de que "área maior = mais atrito" é fundamentalmente errada com base na física estabelecida.

 

Conclusão: desafiando a intuição para entender a realidade

Ao final desse estudo da física do atrito e dos pneus fica claro que nossa intuição muitas vezes nos prega peças. A ideia de que "pneus mais largos proporcionam mais aderência" é uma simplificação enganosa. A força de atrito, que é essencial para o movimento e controle de qualquer veículo, não depende da área de contato aparente, mas sim da intensidade da força normal (o peso que oprime o pneu contra o solo) e da natureza das superfícies em contato.


Os pneus largos em veículos de alta performance como os da Fórmula 1 existem por razões muito mais pragmáticas e complexas: para compensar o desgaste extremo, oferecendo um maior volume de borracha para ser consumido, e para suportar as gigantescas forças e cargas a que são submetidos em condições de corrida, sem falhar estruturalmente. Além disso, a sua concepção também é otimizada em relação à aerodinâmica do veículo. A aderência real é um fenômeno multifacetado, resultado da interação entre a adesão molecular e a indentação mecânica, fortemente influenciada pela natureza viscoelástica da borracha e, crucialmente, pela temperatura de operação e as características e condições do asfalto.


Portanto, da próxima vez que você vir um carro de corrida com pneus gigantes, lembre-se que a física nos ensina que a realidade é mais fascinante do que a primeira impressão. O mundo da mecânica e dos materiais é repleto de nuances que, quando desvendadas, aprofundam nossa compreensão do funcionamento de tecnologias que consideramos tão cotidianas.


¹ WERLANG, Rafhael Brum; DA SILVEIRA, Fernando L. A física dos pneumáticos. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 30, n. 3, p. 614-627, 2013.



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