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Por que o etanol tem “mais potência”, mas rende menos por litro? Considerações sobre a recente mudança no teor de álcool na gasolina

  • Foto do escritor: Patrick Vizzotto
    Patrick Vizzotto
  • 2 de out.
  • 6 min de leitura

A diferença entre potência e rendimento do etanol explica o impacto do aumento do teor de álcool na gasolina e seus efeitos práticos e ambientais.


velocímetro de um carro

O aumento do teor de etanol na gasolina, de E27 para E30, mantém a potência dos motores, mas reduz a autonomia por litro. O fenômeno decorre das propriedades químicas do etanol e da adaptação eletrônica dos veículos, influenciando desempenho, consumo e emissões de gases de efeito estufa.


A discussão sobre o teor de etanol presente na gasolina sempre desperta curiosidade e dúvidas entre motoristas e interessados em mecânica automotiva. Afinal, como pode um combustível ser associado a maior potência, mas, ao mesmo tempo, gerar menor autonomia por litro? Essa aparente contradição decorre de uma diferença fundamental entre dois conceitos: a potência potencial que o etanol pode proporcionar quando o motor é devidamente ajustado e o rendimento volumétrico, diretamente ligado ao conteúdo energético disponível em cada litro do combustível. Compreender essa distinção é essencial para analisar os impactos práticos do aumento da concentração de etanol na gasolina, tanto no desempenho dos veículos quanto no bolso do consumidor e no meio ambiente.

 

Potência Potencial

Quando se afirma que o etanol tem “mais potência”, refere-se à sua capacidade de permitir que o motor gere mais força e aceleração, especialmente quando o motor é projetado ou calibrado para aproveitar plenamente suas características. Isso se deve a duas propriedades físicas e químicas notáveis do etanol:

 

    1. Alta Octanagem: A elevada octanagem do etanol permite que os motores operem com um avanço de ignição mais agressivo e/ou com taxas de compressão mais altas sem o risco de detonação. Isso significa que a combustão pode ser iniciada no ponto ideal para extrair o máximo de trabalho da explosão, e a mistura ar-combustível pode ser comprimida a um grau maior, resultando em uma explosão mais potente. Ambos os fatores contribuem para uma maior potência específica, ou seja, mais potência gerada por unidade de volume do motor (cilindrada).

 

    2. Resfriamento Evaporativo (Calor Latente de Vaporização): O etanol possui um alto calor latente de vaporização. Isso significa que, ao evaporar no coletor de admissão e na câmara de combustão, ele absorve uma quantidade significativa de calor do ambiente. Esse efeito de resfriamento diminui a temperatura da mistura ar-combustível antes da combustão, tornando-a mais densa. Uma mistura mais densa permite que mais oxigênio e, consequentemente, mais combustível, sejam introduzidos no cilindro por ciclo. Isso resulta em uma combustão mais rica em energia e, portanto, na geração de mais potência, sem o aumento da temperatura na câmara que normalmente levaria à detonação. É como se o etanol agisse como um “intercooler” natural para o motor, permitindo-lhe “respirar” mais eficientemente, especialmente sob condições de alta demanda.

 

Rendimento Volumétrico (km/L)

O rendimento volumétrico, por outro lado, está diretamente ligado ao conteúdo energético por litro (MJ/L) do combustível. O etanol tem aproximadamente 65% da energia volumétrica da gasolina. Isso ocorre porque a molécula de etanol já contém oxigênio em sua composição (C2 H5 OH), o que significa que, para uma dada massa, parte do “peso” já é de um elemento que não contribui para a energia de combustão da mesma forma que os hidrocarbonetos puros da gasolina. Em outras palavras, um litro de etanol simplesmente entrega menos energia total do que um litro de gasolina pura.

 

Para visualizar isso, imagine que você tem dois tipos de lenha do mesmo volume. Uma é de madeira densa e bem seca (como a gasolina), e a outra é de uma madeira mais leve e um pouco úmida (como o etanol). A madeira mais leve pode, se bem atiçada, queimar com uma chama mais intensa e rápida (potência), mas a madeira densa, para o mesmo volume, certamente fornecerá mais calor total e durará mais tempo (energia total e rendimento).

 

Outros fatores importantes que merecem comparação

A complexidade da relação entre combustível e veículo não se limita somente à octanagem e à densidade energética. Outros elementos contribuem para a experiência de condução e o custo:


1. Mapa de Eficiência do Motor (BSFC): Cada motor possui um “mapa de eficiência”, sendo uma representação gráfica de seu consumo específico de combustível (BSFC - Brake Specific Fuel Consumption) em diferentes combinações de carga (demanda de potência) e rotação. O BSFC indica a quantidade de combustível consumida para produzir uma unidade de trabalho.

 

Motores maiores, como um 1.6 ou 2.0, podem, no uso urbano, operar em cargas parciais muito baixas, longe de sua “ilha” de maior eficiência no mapa. Isso pode torná-los relativamente “gastões” em condições de trânsito. Em contraste, um motor 1.0, sendo menor, muitas vezes precisa operar em cargas relativas mais altas para manter o desempenho desejado, o que pode empurrá-lo para uma região mais eficiente de seu mapa. Isso ajuda a explicar por que, em alguns cenários urbanos, um carro 1.0 pode consumir a mesma quantidade de combustível ou até menos que um 1.6 ou 2.0, independentemente da pequena variação no teor de etanol. Neste caso, a física do ciclo de operação do motor e como ele se adapta às demandas do dia a dia têm um peso muito maior do que a alteração de E27 para E30, recentemente aprovada no Brasil.

 

2. Dirigibilidade e Calibração da ECU: A Unidade de Controle Eletrônico (ECU) do seu carro é um verdadeiro maestro, monitorando e ajustando centenas de parâmetros do motor em tempo real. Uma de suas tarefas mais críticas é manter a estequiometria ideal da mistura ar-combustível (λ≈1), garantindo que a combustão seja a mais completa possível e que o catalisador – o dispositivo que reduz os poluentes no escapamento – funcione com máxima eficácia. Com a introdução de mais etanol (de E27 para E30), a ECU detecta essa mudança na composição do combustível e ajusta automaticamente a quantidade de combustível injetada.

 

Como o etanol requer um AFR (Air-Fuel Ratio, ou relação estequiométrica entre ar e combustível na câmara de combustão do motor) menor, a ECU compensa injetando uma quantidade maior de combustível — em massa e em volume — para a mesma quantidade de ar admitido. Você não sentirá nenhuma diferença na dirigibilidade, potência ou resposta do acelerador devido a essa recalibração. É uma tecnologia que funciona nos bastidores, garantindo o desempenho e a limpeza do motor.

 

3. Emissões e o Meio Ambiente: A questão ambiental é um dos principais motivadores para o aumento do uso de biocombustíveis. O carbono presente no etanol é considerado biogênico. Isso significa que, durante seu crescimento, a cana-de-açúcar (ou outras culturas que produzem etanol) absorve dióxido de carbono (CO2) da atmosfera através da fotossíntese. Esse CO2 é posteriormente liberado na atmosfera quando o etanol é queimado no motor.

 

Assim, em um ciclo de vida completo (que considera todas as etapas, desde o plantio e cultivo até a produção do combustível e sua queima) o etanol tipicamente resulta em uma redução das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE) em comparação com a gasolina, a qual é um combustível fóssil que libera carbono que estava armazenado por milhões de anos no subsolo. No entanto, na medição das emissões diretamente pelo escapamento (por quilômetro rodado), o efeito pode variar dependendo da mistura exata e da eficiência específica do sistema de motor e exaustão de cada veículo. A complexidade do impacto ambiental exige uma visão de ciclo de vida, que vai muito além do que podemos medir diretamente no escapamento.

 

Considerações

A análise sobre por que o etanol pode ser associado a maior potência, mas, ao mesmo tempo, resultar em menor rendimento por litro, mostra que não se trata de uma contradição, mas de duas formas diferentes de olhar para o desempenho energético. Enquanto suas propriedades químicas e físicas – como a alta octanagem e o elevado calor latente de vaporização – favorecem um ganho de potência quando o motor é devidamente projetado ou calibrado, o menor conteúdo energético por litro do etanol explica sua menor autonomia. Essa distinção é central para compreender os impactos da recente mudança no teor de etanol na gasolina brasileira, de E27 para E30.

 

Do ponto de vista prático, a alteração de três pontos percentuais é absorvida sem dificuldades pela maioria dos veículos modernos, já que a ECU faz os ajustes necessários para garantir a relação estequiométrica ideal, preservando a dirigibilidade e o desempenho. O motorista dificilmente perceberá diferenças significativas no dia a dia, ainda que pequenas variações de consumo possam ocorrer. Mais importante que a mudança em si é compreender como fatores como o mapa de eficiência do motor, o estilo de condução e a calibração eletrônica desempenham papéis muito mais relevantes no consumo e na experiência ao volante do que a diferença entre E27 e E30.

 

Sob a ótica ambiental, o aumento da participação do etanol reforça o compromisso do Brasil com a ampliação do uso de biocombustíveis e a redução das emissões líquidas de gases de efeito estufa, ainda que os resultados dependam de análises de ciclo de vida mais abrangentes. Nesse sentido, a adoção de misturas com maior teor de etanol deve ser vista como parte de uma estratégia mais ampla de sustentabilidade energética, que alia benefícios ambientais e econômicos, mas que também exige atenção aos impactos individuais para veículos menos adaptados.

 

Em síntese, compreender a dualidade entre potência e rendimento, bem como as implicações da nova proporção de etanol na gasolina, permite ao consumidor interpretar com mais clareza o funcionamento de seu veículo e os objetivos dessa política energética. Trata-se de um equilíbrio delicado entre eficiência, desempenho, custo e sustentabilidade – um equilíbrio que o Brasil tem buscado construir ao longo de décadas de experiência pioneira com biocombustíveis.

© 2025 por Patrick Vizzotto

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